<i>Get back!</i>

Nuno Gomes dos Santos

Os Be­a­tles can­taram uma can­tiga, numa al­tura cru­cial para a banda, in­ti­tu­lada Get Back, que po­demos tra­duzir por «vai-te em­bora», ou «volta para trás». Não sei porquê, mas as coin­ci­dên­cias, às vezes, es­pantam-me. Acordei com Get Back no ou­vido e a can­tiga não me deixou du­rante muitas horas, pre­ci­sa­mente no dia em que soube que a frau vinha anun­ciar mais cinco anos (cinco anos!) de aus­te­ri­dade para Por­tugal. Get Back foi uma can­tiga pre­mo­ni­tória, no dia em que acordei com ela a in­vadir-me os ou­vidos com sons que me agradam e com uma ideia, agora di­rec­ci­o­nada, que me obriga a ir para a rua berrar a plenos pul­mões (al­guém há-de tra­duzir, para a me­gera) «vai-te em­bora!».

Bem sei: vai haver quem diga que isso não adi­anta nada, que a ma­trona se está ma­rim­bando para o meu pro­testo, mesmo que so­mado a mi­lhares de pro­testos iguais que, sendo muitos, ainda assim não con­ta­riam, por es­tarem longe das ideias e pre­missas mer­ke­li­anas. São nú­meros, mesmo que sejam nú­meros onde cada di­gito é uma pessoa. Porém, es­ta­tis­ti­ca­mente, são xis por cento, não o so­ma­tório de um Zé, de uma Maria, de uma Ana ou de um Mi­guel (muitos Zés, Ma­rias, Anas ou Mi­guéis) que, por uma razão qual­quer inex­pli­cável, vivem, pensam e, por pen­sarem, querem viver me­lhor. Uma ma­çada!

Se­nhora her­deira de ideias pe­ri­gosas a sair da hi­ber­nação, a pa­troa da Ale­manha e can­di­data a dona da Eu­ropa atreveu-se a vir a Por­tugal, qual pon­tí­fice a aben­çoar o seu re­banho, para ser re­ce­bida com vé­nias sub­missas por quem se move por via dos cor­de­li­nhos de ma­ri­o­netas que a mu­lher ma­nu­seia. Mas há-de saber que o seu redil tem bi­chos tres­ma­lhados que, em vez de balir, cantam; que, em vez de zurrar, gritam; e que, em vez de ca­ca­rejar, usam pa­la­vras de re­púdio, ex­planam ideias de de­sa­vença, fazem contas de somar que con­tra­põem à ine­vi­ta­bi­li­dade da sub­tração e apontam a vi­a­bi­li­dade de um outro ca­minho de adi­ci­onar von­tades e mudar de rumo.

Get back!, im­pe­ratiz auto-pro­cla­mada com po­deres re­for­çados pela sub­ser­vi­ência troi­kiana aos in­te­resses da en­gorda de poucos, à custa do ema­gre­ci­mento da mai­oria, que é apa­nágio dos súb­ditos ig­nó­beis que nos go­vernam! Vamos cantar essa canção ou outra, ou ou­tras! Vamos fazer-nos ouvir nem que che­guem aos ou­vidos da opu­lenta se­nhora apenas al­guns ecos do nosso não ao em­po­bre­ci­mento e à amar­gura im­posta! Se não o fi­zermos se­remos cúm­plices da rou­ba­lheira e da in­dig­ni­dade!

Não se iludam os que pensam que basta cantar, que chega en­chermos praças e ruas com o nosso pro­testo e re­púdio. Muito mais há para fazer e há quem dê tudo por isso. Mas não pensem os que nos con­denam as can­tigas e as nossa vozes ao alto que sermos muitos nas ruas, praças e ave­nidas é de so­menos. Será pouco? Pode ser. Mas é do so­ma­tório de gotas que se faz um rio. E é na cor­rente em que es­tamos que vive a von­tade de che­garmos ao mar imenso da vida que me­re­cemos.

E não é que pas­saram dias e a can­tiga não me larga? Lá estou eu a cantá-la outra vez, get back, get back...

 



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